Alunos do segundo ano da Escola Municipal Lúcia Moro, aprendem a ler e escrever e, simultaneamente, produzem seus primeiros livros, guardando suas memórias
Se estamos guardando imagens de nossas crianças, onde estamos depositando suas palavras? O professor Bruno Jose Martins da Silva, que leciona junto ao segundo ano do Ensino Fundamental, da Escola Municipal Lúcia Moro, em Cianorte, Paraná, se deparou com essa pergunta, quando conheceu a coleção de livros denominada Guardador de Palavras da Gabi, da jornalista Aida Franco de Lima. A série de livros é baseada nos diálogos e situações cotidianas que autora guardou ao longo dos anos, desde quando sua filha, a Gabi, começou a dizer as primeiras palavras. Os volumes são separados por fases de idade, estando atualmente na idade de cinco anos.

INSPIRAÇÃO
A Escola estava se preparando para sua Mostra Literária, ocorrida ao final de setembro, e cada professor escolheria uma autora brasileira para que os alunos se inspirassem em suas produções. Foi então que o professor Bruno decidiu que iria valorizar os talentos de Cianorte e pensou também em criar algum conteúdo que os alunos produzissem, já que estão na fase da alfabetização e letramento. E o Guardador de Palavras da Gabi, surgiu como a alternativa ideal, pela facilidade com que os alunos se veem representados falas e ilustrações.
Os 21 alunos foram separados em grupo e cada um deles explorou o conteúdo dos quatro volumes de livros que compõem, até o momento, a coleção. “Eles foram procurando no Guardador o que mais chamava a atenção, a partir das ilustrações, as escritas com frases curtas e de fácil leitura”, destaca o professor.
“Está bem interessante mesmo. Alguns falam o que fizeram no dia, o que fizeram ontem, o que vão fazer. Alguns contam histórias, outros relatam viagens que fizeram. É muito show!”, narrou o professor Bruno, tão logo as atividades começaram. Na galeria fotos, imagens registradas por Bruno, na confecção dos Guardadores.
















- “Através desse contato, em que conheceram livros onde estavam guardados pensamentos, desenhos, frases, o dia a dia de uma criança como eles, os alunos foram motivados a escreverem seus próprios Guardadores”, conta o professor Bruno.






O professor Bruno conta que os alunos sabiam que teria a Mostra Cultural e empolgados com a escrita, informados também que o material produzido seria observado por outras pessoas, ficaram motivados e procuraram escrever o mais corretamente possível. “Elas queriam compreender melhor as sílabas, as palavras, como se escreve corretamente aquela palavra que ela quer por no texto, justamente para estar mais próxima do aceitável para que o adulto veja aquilo que ela conseguiu produzir. Então, o que elas mais gostam é de falar: “Olha aqui o que eu escrevi! Olha o que eu fiz. Eu produzi”. As crianças têm todo um gosto de apresentar aquilo que fizeram”, comenta Bruno.
“Eles perguntavam, iam no silabário, queriam saber se escreveram corretamente. Vi alunos que entraram no meio do ano na sala, com uma defasagem muito significativa e que começaram a seguir o ritmo dos demais, que já estão mais avançados no processo de alfabetização e a vontade de acompanhar é bem grande.” (professor Bruno Jose Martins da Silva)

O professor destaca que chamou muito sua atenção o caso de uma garota que não sabia nem escrever o nome. Mas que depois de dois meses, ela já conseguia escrever e ler o nome, fazer leitura de palavras simples e complexas e escrever relatos em seu Guardador.
O ÍNICIO
Quando o projeto começou, as crianças eram incentivadas a trazer para sala de aula os acontecimentos cotidiano, sua imaginação, sentimento daquilo que ocorreu. Uma viagem, o que houve no final de semana. No início elas usavam papel almaço. A atividade foi um sucesso e teve continuidade. E então Bruno decidiu que cada criança iria ter seu próprio Guardador. Bruno passou a imprimir algumas folhas com margens e linhas, para auxiliar na atividade, para que transmitissem suas histórias, seus desejos.

O professor Bruno faz uma observação importante ao citar que muitas das escritas dos alunos estão com erros gramaticais, como é esperado para quem está iniciando o processo de alfabetização. E que neste momento, o olhar mira para outra direção. “Eu deixo para saber até onde cada qual chegou em determinado tempo. O foco agora não é lidar com acordo ortográfico diretamente, mas na criança poder passar para o papel aquilo que ela aprendeu a ler e escrever. Um exemplo, é a palavra cabeçalho. Tem criança que vai escrever “cabesario”, “cabeçario”, mas ela sabe que é o ‘cabeçalho’. Então eu vou deixando desse modo, que não são erros. O que ela apresenta é até onde a criança conseguiu chegar nesse mês, nessa data. Alcançou a alfabetização. Está nesse processo.” enfatiza o professor.
ALÉM DA ESCOLA
Bruno lembra que o projeto nasceu direcionado para a realização da Mostra, mas expandiu. Então, passada a atividade, as crianças vão continuar transcrevendo seus pensamentos para o Guardador, que cada uma está fazendo, para levarem para casa no final do ano. O professor espera que os pais sintam-se motivados a continuarem ao longo das fases da escola e da vida dessas crianças, relatando e construindo seu próprio livro, sua própria história. “O que seria aí o diário, como antigamente nós chamaríamos. Agora, se tornou o Guardador.”
LEVEZA
- É um processo que não se torna penoso para as crianças. Porque quando vou ali no quadro e simplesmente escrevo um texto, uma parlenda, um poema, um canto, uma música, pra elas se torna cansativo aquele processo de escrita. Porque é algo que elas ainda não conhecem. Primeiro precisam escrever, depois ler, entender. Pra depois saberem e concluir: “Nossa, que parlenda legal! Nossa, que rima legal, que música pra gente rimar…” Então, muitas vezes esse processo tradicional é penoso para as crianças. Porém, no Guardador, elas já têm aquele pensamento na mente que é atrativo para elas. Que é gostoso. Elas fazem de modo que não é penoso. Tanto é que prestes a terminar a aula, 17h30, e é hora de guardar o material, por volta das 17h20 e elas ainda querem continuar escrevendo no Guardador, não querem que guarde. Porque elas estão com tantas ideias e querem por no papel. E se deixar ficam a tarde toda porque não é cansativo. E o que tento falar é que elas podem continuar a ideia na casa delas. Elas não estão levando o Guardador para casa porque muitos podem não trazer de volta e perdemos a continuidade da atividade em sala. Mas eu oriento que continuem nas casas delas com aquela ideia. Penso que os pais podiam fazer um Guardador em casa, que os pais trabalhassem com outros fatos importantes da vida da criança que nem sempre ela vai levar para o Guardador que está na escola. Então essa é a proposta, criar esse gosto pela leitura, pela escrita, pela ilustração. (Bruno Jose Martins da Silva)
INSEGURANÇA POR JULGAMENTO
A atividade para produzir o Guardador na escola foi um processo tranquilo, mas ao chegar nos dias próximo da Mostra, as crianças não queriam que fosse exposto o que escreveram. Mas os professores conversaram muito, falaram como era lindo o que tinham feito e outras pessoas precisavam ver. Bruno não entendia porque queriam tanto que ele e a professora Renata vissem, queriam tanto mostrar para os pais e não desejavam mostrar para os outros de fora. Então eles descobriram que elas tinha medo do julgamento, do certo e errado. E foram explicando para elas não temerem. Tirarem da cabeça o certo e o errado, pois foram elas que produziram aquele conteúdo, algo delas. “Se você produziu, é seu, sua autoria. Não está certo nem errado. É seu. É aceitável, é seu e nós estamos felizes por isso”, dizia Bruno.
Porque muitas vezes fica incutido o peso do certo e do errado e a imaginação é tolhida. Tem crianças que escrevem o Z corretamente, mas no Guardador escreveu ao contrário. E o professor preferiu não corrigir naquele momento porque compreendeu que o Guardador reflete o tempo delas, deixando para corrigir as palavras que identificou que os alunos tinham mais dificuldades, para uma ação coletiva. Fazendo a correção no quadro, sem julgamento. O professor padronizou as folhas e o tamanho, mas o restante é 100% cada criança. “Entendi que é um Guardador de processos mesmo”, define Bruno.
A GRANDE NOITE



As crianças estavam todas presentes com suas famílias, orgulhosas em exibir as duas mesas cheias de Guardadores. Com o apoio da Professora Renata Andreia Nery Panucci – PAEE (Professora de Atendimento Educacional Especializado), todas as formas de manifestações foram permitidas. Além das escritas, alunos produziram seus livros com desenhos ou fotografias. Cada criança superou barreiras e transformou as linhas brancas em suas histórias pessoais. Rechearam as páginas com as comidas preferidas, os personagens, passeios, o cotidiano em família.

O resultado, parcial, do trabalho foi exibido orgulhosamente durante a Mostra Literária 2023, realizada ao final de setembro na própria Escola. (Fotos: Bruno Jose Martins da Silva)

“A Mostra foi um sucesso. O interesse dos pais foi muito grande. Só tinha elogios ao trabalho e à coleção do Guardador de Palavras da Gabi. Alguns pais estão interessados inclusive em adquirir o Guardador”, contou o professor no dia seguinte à atividade. “Muitos pais falaram que vão fazer o Guardador de Palavras em casa com os filhos, inclusive uma professora contou que tinha começado a fazer a atividade com o filho.”
A autora do livro esteve presente no evento e falou a respeito da importância de guardar as memórias das crianças, de escutar e dialogar com elas. Presenteou cada aluno com uma sacolinha com as grafias “Guardador de Palavras do (a)”, no intuito de as crianças escreveremos os nomes e os pais armazenarem ali bilhetes, desenhos, memórias afetivas das crianças.
“Ver o Guardador inspirando tantas crianças, quando estão iniciando as descobertas do universo da escrita e da leitura é uma alegria sem tamanho. É uma realização.”, resumiu a autora.







Autora contou como surgiu o Guardador de Palavras da Gabi, quando preparava aulas para seus alunos e postava frases de sua filha e muitos interagiam dizendo sobre as memórias coletivas que eram despertadas.

Os alunos continuarão escrevendo seus Guardadores e em ao final do no letivo, em dezembro, haverá o lançamento oficial. E desta vez, vão levar para casa seus Guardadores e quem sabe, muitos deles irão precisar de mais páginas para continuarem a jornada literária?